quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Mark Pellington - Tapeçaria de sombras

Depois de muitas semanas de ausência (pelas quais peço desde já desculpa) e continuando na senda de realizadores esquecidos, surge a ocasião para uma justa referência à para já curta mas intensa obra de Mark Pellington. À semelhança de inúmeros autores da sua geração, este norte-americano iniciou-se no mundo dos videoclips na década de 90, trabalhando com grupos como os Pearl Jam, U2 ou INXS. A partir de 1995 lançou-se no mundo da televisão com a aclamada série documental "United States of Poetry", dividida em seis episódios temáticos sobre a poesia contemporânea dos EUA e as suas extensões literárias e musicais. Dois anos mais tarde experimenta o cinema com "Going all the way", um drama discreto onde teve oportunidade de dirigir Ben Affleck e Rachel Weisz, e com "Destination Anywhere", uma narrativa elaborada em redor de algumas das músicas de Jon Bon Jovi para o álbum com o mesmo título. Mencione-se que, também em 1997, Pellington dirigiu alguns episódios da excelente série de TV "Homicide - Life on the Street", reconhecida pela autenticidade na representação do trabalho da brigada de homicídios de Baltimore.
Regressa ao grande ecrã com "O Suspeito da Rua Arlington" (Arlington Road, 1999), fabuloso thriller psicológico que, infelizmente, não conquistou grande atenção por parte do público e da crítica, mas que é um dos maiores exemplos do género produzidos na última década. Um professor universitário (Jeff Bridges) retira-se com o seu filho de nove anos num subúrbio de Washington depois da sua mulher, uma agente do FBI, ter morrido durante o cerco à propriedade de um grupo de extrema-direita. Traumatizado com a sua tragédia pessoal, concentra-se nas suas aulas sobre o terrorismo na história americana. Depois de salvar um rapaz que encontra ferido na rua, acaba por criar uma relação de amizade com os pais dele (Tim Robbins e Joan Cusack), que descobre serem seus vizinhos. Conforme ganha confiança com eles, começam a surgir dúvidas sobre a veracidade das suas vidas aparentemente perfeitas. As investigações que faz levam-no a crer que os seus vizinhos podem fazer parte de um grupo extremista que esteve envolvido num devastador ataque à bomba em Saint Louis, numa espiral de obsessão e conspiração que o levarão a um final chocante. O término do filme, pela enorme surpresa que traz, acabou também por ser uma das razões do seu insucesso junto das audiências. Para o nosso mundo pós-11 de Setembro, os temas de “O Suspeito da Rua Arlington” são mais actuais que nunca. Mark Pellington mostra com este filme o seu enorme talento como realizador, exímio na gestão do suspense e na cuidada cadência das revelações surpreendentes que mantêm a narrativa viva. As actuações de Jeff Bridges (perfeito no papel de um homem perturbado) e Tim Robbins (assustador na sua ambivalência) conferem autenticidade ao sentimento de tensão que percorre a história, magistralmente sublinhada pela banda sonora criada a meias pelo experiente Angelo Badalamenti e pelos Tomandandy. Quem conhecer um pouco da história moderna norte-americana, vai certamente notar os paralelos com eventos reais: o incidente de Ruby Ridge, no qual se baseia a morte da mulher de Bridges no filme, e o ataque bombista de Oklahoma, transportado aqui para Saint Louis. A título de curiosidade, refira-se que o genérico do filme foi criado pelo genial Kyle Cooper, responsável por algumas das melhores sequências introdutórias da história recente do cinema (“Seven”, “A Esfera” e o videojogo “Metal Gear Solid 3”, por exemplo).




Trailer do filme "A Profecia das Sombras" (The Mothman Prophecies, 2002).


A sua terceira longa-metragem seria o fenomenal “A Profecia das Sombras “ (The Mothman Prophecies, 2002), inspirado no seminal livro homónimo de John Keel (para mais informações sobre este livro consultem este excelente site, em inglês, criado pelo meu irmão http://bf.web.simplesnet.pt/mothman). Concentrando-se nas histórias pessoais dum grupo restrito de personagens (grande parte dos acontecimentos relatados no livro foram, compreensivelmente, esquecidos) Mark Pellington apresenta aqui o seu melhor trabalho até ao momento, um drama sobrenatural sublime onde as fronteiras da realidade se esbatem e acontecimentos bizarros invadem a existência de pessoas comuns. Este factor realça o impacto emocional de toda a narrativa, explanada num ritmo lento, feito de silêncios incómodos, de uma tensão quase palpável e do confronto eterno, em surdina, entre os terrores da vida e da morte.
Richard Gere (John Klein), numa das suas melhores interpretações de sempre, traz-nos uma personagem emocionalmente ferida após o inesperado falecimento da sua noiva. Nos últimos momentos de vida, deixa-lhe um caderno com misteriosos esboços de uma criatura que viu no momento em que ambos se viram envolvidos num despiste de automóvel. Dois anos depois, o jornal onde trabalha envia-o a Richmond, na Virgínia, para entrevistar um político. Durante a viagem perde-se e vai parar, inexplicavelmente, a Point Pleasant, cidade situada a cinco horas de distância do local onde deveria estar. Depara-se com uma comunidade pacata e aterrorizada por estranhos eventos, desde luzes e chamadas telefónicas estranhas, a avistamentos de uma criatura alada (o “Mothman” do título), que descobre ser semelhante à que a sua noiva desenhou. Depressa percebe que estes eventos paranormais giram em redor de Indrid Cold, uma bizarra figura com aparentes poderes proféticos, cuja aparição está associada a grandes catástrofes vindouras. Obcecado com a busca da verdade, Klein vê-se numa encruzilhada de fantasmas pessoais e acontecimentos sobrenaturais que o parecem perseguir e que culminarão num final dramático. Para criar esta atmosfera oprimente, Pellington preferiu recorrer a poucos efeitos digitais, utilizando a câmara (através de desfocagens), a iluminação (observem-se cuidadosamente as sequências com Gere no quarto de motel) e a montagem como principais armas. Perfeita também a banda sonora dos Tomandandy, um trabalho pleno de originalidade, feito de longínquos uivos e sussurros, pungentes notas de piano e obscuras batidas electrónicas, acompanhadas amiúde pelo dramatismo das cordas. Um conjunto cinematográfico excepcional, num dos grandes exemplos do que o terror contemporâneo pode (e deve) oferecer.



Videoclip de "Everybody's Changing" (2005) dos Keane que acabou por nunca ser oficialmente divulgado ,supostamente pelo grupo achar que não se adaptava à temática da música.


A carreira de Mark Pellington seria interrompida pela trágica morte da sua mulher aos 42 anos, depois de doença prolongada. Ainda profundamente afectado, realizou em 2005 alguns episódios para a série “Casos Arquivados” (Cold Case, transmitida em Portugal pela RTP 2) e voltou aos videoclips, dos quais destacamos “Everybody’s Changing”, onde prestou homenagem à sua esposa (ver vídeo acima), mas que os Keane iriam recusar, optando por filmar um novo clip. Interessante também o seu videoclip de 2007 “Soul Mate”, de Natasha Bedingfield, que surge aqui apresentado como exemplo da estética deste realizador.
Para o futuro existem já alguns filmes anunciados, como “Henry Poole is Here”, uma comédia negra com Luke Wilson com lançamento planeado para este ano, e ainda “Night and Day You are the One”, thriller sobrenatural sobre um homem que não consegue distinguir os sonhos da realidade depois de assistir a um horrível assassinato. Projectos interessantes para acompanhar a evolução da carreira deste realizador que é já um talento confirmado e cuja obra merece um visionamento cuidado.



Videoclip de "Soul Mate" (2007) de Natasha Bedingfield. Notem-se as
enormes semelhanças estéticas com "A Profecia das Sombras".