quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Facepoop

Confesso que, quando surgiram as primeiras notícias indicando que David Fincher ia realizar um filme sobre a criação do Facebook, fui acometido por uma sensação de receio. Depois do inconsequente "The Curious Case of Benjamin Button", balofo show-off de efeitos digitais, Fincher necessitava de redimir-se, de regressar à atmosfera obsessiva e oprimente que marcou os melhores momentos da sua obra. O ecos vindos da crítica norte-americana, quase unanimemente maravilhada com "The Social Network", e o arraial de nomeações e prémios acumulados até ao momento foram aligeirando o temor. Vãs esperanças...
Mark Zuckerberg é-nos apresentado como um jovem estudante de Harvard que, durante uma birra pueril após ter levado uma tampa duma potencial namorada (mais tarde percebemos que esta mulher será o fulcro da sua obsessão, a primeira verdadeira paixão da sua vida) decide vingar-se e cria uma rede social para a comunidade universitária (inicialmente um esforço jocoso que, eventualmente, será alargado para o público em geral gerando o incontornável Facebook). Fincher tenta filmar esta história como se de uma picaresca epopeia moderna se tratasse, um putativo Don Quijote do século XXI que luta contra os moínhos de vento da inveja e da solidão da sociedade moderna. Ou talvez não.
Aaron Sorkin, argumentista do filme, parece não saber como extrair interesse de uma sequência de eventos desprovidos de qualquer fundo dramático. Gosta claramente de brincar com as palavras e estas são debitadas a um ritmo alucinante pelas personagens. Contudo, a fronteira entre o diálogo perspicaz e a verborreia oca é frequentemente transposta (nem todos podem ser David Mamet). Oscilando entre o slice of life do mundo universitário e o thiller judicial, feito de acareações entre personagens cujas relações foram corroidas pelo sucesso estrondoso e meteórico do Facebook, "The Social Network" apresenta-se como um exercício árido sobre a sociedade contemporânea que, em algum momento, consegue retratar com eficácia a complexidade psicológica dos intervenientes ou o real impacto das consequências das suas acções. Como documento de uma era e de uma revolução social o filme falha rotundamente pela sua frieza e distanciamento em relação às personagens. Como potencial caricatura de uma juventude alienada e cada vez mais solitária (como Zuckerberg) falha ainda mais (é difícil esboçar um sorriso, mesmo que cínico). Por momentos parece que "The Social Network" vai enveredar por uma narrativa à lá "Rashomon", feita de múltiplas verdades ou versões da verdade sobre quem é o real autor do conceito do Facebook. Rapidamente tal ilusão se esvai. Até no capítulo da mise en scéne, em que Fincher não raro foi capaz de surpreender e até inovar, este filme salda-se num profundo fracasso.

Em que ficamos então? Efabulação sobre uma solidão cibernética? Conto moral sobre como o sucesso financeiro pode destruir a nossa dimensão pessoal e emocional? Sinfonia patética sobre um amor não correspondido? Nada disso. O mais triste é perceber que por detrás da história de Mark Zuckerberg existia um substrato, mesmo que magro, sobre o qual os cineastas poderiam ter construído uma narrativa sólida, feita de personagens com dilemas reais e algum relevo na caracterização emocional. Ficamos com uma mão cheia de nada. O receio que confessei nas primeiras linhas deste texto sai confirmado e ampliado.
Para onde caminha David Fincher como realizador? Neste momento trabalha num remake, aparentemente desnecessário, do sucesso cinematográfico sueco "The Girl with the Dragon Tattoo". O thriller é certamente um território mais familiar, mas será possível superar o factor precocidade na decisão de refilmar uma obra tão recentemente adaptada ao cinema? E que dizer do súbito delírio da crítica com um filme que é tão pouco representativo das qualidades do seu realizador? Fincher pode até ganhar, pela primeira vez, um Óscar por este seu esforço. Não seria a primeira vez que Hollywood premiaria um antigo pária por uma aproximação à banalidade das formas e conteúdos “aprovados” pelo establishment cinematográfico (o exemplo de Martin Scorsese e do seu "The Departed" vem imediatamente à ideia).

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Playstation 2 à lá David Lynch

David Lynch é um dos realizadores mais proponderantes e reconhecidos das últimas três décadas. A sua carreira cinematográfica inclui clássicos como "Eraserhead", "O Homem Elefante", "Veludo Azul" ou "Mulholland Drive". Como co-criador da incontornável série "Twin Peaks", transportou o seu universo bizarro para a televisão. Menos conhecidas são as incursões do autor norte-americano noutras formas de expressão artística tais como a música, as artes gráficas, o cinema de animação e a publicidade. Nesta última área de actividade sobressai um conjunto de anúncios que criou e realizou a pedido da Sony, no ano 2000, para publicitar a consola do momento: a Playstation 2. É definitivamente de saudar a audácia do gigante electrónico japonês em dar largas à imaginação de Lynch, que nos ofereceu as 7 pequenas jóias do humor negro e do surrealismo que abaixo pode ser vistas. Da divertida subversão de ícones da história da sétima arte como "Bambi" e "O tubarão", passando pela auto-homenagem à atmosfera noir e industrial do seu "Eraserhead", até à contemplação da sabedoria dos povos nativos americanos, este mosaico audiovisual constitui uma bela introdução ao mundo criativo de David Lynch.















sexta-feira, 21 de agosto de 2009

"Avatar" de James Cameron - Primeiras Impressões

Depois de 4 anos de um longo processo de produção foram finalmente divulgadas as primeiras imagens de "Avatar", o novo filme de James Cameron que tem estreia marcada para 17 de Dezembro em Portugal. Para além da trailer, já disponível online, o realizador preparou uma montagem de sequências do filme, com cerca de 20 minutos de duração, que permitiu a alguns felizardos (este autor incluido) antever, na glória visual do 3D, o aspecto final da obra. Os detalhes conhecidos da história são escassos: Jake Sully, um marine paraplégico, é seleccionado para fazer parte do programa Avatar, que lhe permitirá incorporar um Na'vi. Estes organismos alienígenas habitam o planeta Pandora, para onde Jake é transportado e onde ficará a conhecer de perto a cultura e costumes daquela raça. A exploração cada vez mais intensa dos recursos de Pandora por parte dos humanos leva a que a sobrevivência dos Na'vi seja posta em causa, iniciando um conflito no qual Jake terá que escolher uma facção.


A preview exclusiva que ocorreu hoje em várias salas de todo o mundo, incluindo 4 em Lisboa e no Porto, inicia-se com uma breve introdução de James Cameron, que indica que as sequências apresentadas são retiradas da primeira parte do filme, de forma a preservar a integridade (e surpresas) da narrativa. No primeiro bloco de imagens assiste-se a um breve discurso do comandante das forças militares terrestres, lançando a temática de um conflito latente entre os humanos e os Na'vi, altura em que surge Jake Sully. No bloco de imagens seguinte vemos o protagonista a entrar na máquina que permitirá que a sua personalidade possa ser trasnferida para um corpo alienígena pré-preparado. Na interessante sequência seguinte, podemos ver a adaptação de Sully ao seu novo e gigante corpo, mas também ao seu fascínio por poder voltar a caminhar. As cenas seguintes são já ambientadas em Pandora, planeta de luxuriante flora e perigosa fauna. Surge uma sequência em que Neytiri, a protagonista feminina do filme, revela a sua aptidão agressiva e guerreira ao salvar Sully de um ataque de animais. Digna de menção é ainda a última sequência em que Sully, integrando-se entre o povo Na'vi, aprende a domar um ser alado que lhe permitirá deslocar-se pelo ar.


A atmosfera de antecipação gerada pela comunidade cinéfila em redor de "Avatar" é enorme, facto plenamente justificado pela obra anterior de James Cameron. "Terminator", "Aliens", "The Abyss" e "Terminator 2 - Judgement Day" atribuem-lhe o justo pergaminho de mestre da ficção científica cinematográfica, colocando-o, nesse âmbito, a par de realizadores como Stanley Kubrick, Steven Spielberg ou Ridley Scott. A este epíteto junta-se toda a panóplia tecnológica criada propositadamente para que este filme fosse possível, tornando-o num projecto profundamente ambicioso e que contribuiu efectivamente para moldar a forma como se poderá fazer cinema no futuro (nada a que o realizador canadiano já não nos tenha habituado). Atento às evoluções ocorridas no género da ficção científica nos últimos anos, em que a hard sci-fi de espaçonaves e andróides tem dado lugar a uma fusão ou subversão quase total aos elementos temáticos da fantasia, Cameron revela também essa tendência em "Avatar", como é certamente notório na concepção dos Na'vi (aspecto físico, importação de elementos étnicos e integração cultural com a natureza) e das restantes criaturas que habitam o planeta Pandora.


Sendo verdade que 20 minutos de filme são muito pouco para que se possa formar uma ideia concreta sobre o aspecto narrativo, permitem-nos contudo tirar algumas ilações acerca da real dimensão da inovação visual que o mesmo acarreta. Podemos afirmar que a estética é magistral e, só por si, fará qualquer um ir ao cinema para ver o espectáculo óptico, amplificado pela aplicação da tecnologia 3D. A evolução no campo das expressões faciais é enorme em relação a esforços CGI anteriores, particularmente notória nos movimentos das bocas das personagens. O trabalho efectuado nos cenários é magnífico, mesclando a familiaridade das formas terrestres com elementos geológicos, vegetais e animais que tornam Pandora numa paisagem única. O showcase que nos foi dado a ver permite, essencialmente, apreciar o trabalho visual que possui, indubitavalmente, uma qualidade excepcional se bem que não totalmente original.


A propósito, o factor originalidade torna-se cada vez mais difícil de atingir face à profusão de filmes que recorrem aos efeitos visuais digitais, universo criativo ao qual se têm juntado os videojogos. Ao verem "Avatar", muitos gamers irão certamente sorrir ao verem elementos que recordam alguns jogos de êxito lançados na última década. Outro aspecto relevante, porque poderá criar alguma dose de desilusão, está relacionado com a eterna promessa do realismo do trabalho de CGI. "Avatar" atinge um grau elevadissimo de qualidade sendo, em alguns aspectos, o melhor jamais produzido, mas a colagem ao real termina quando se envereda na criação de um universo físico e orgânico totalmente novo, para o qual não temos pontos de comparação na nossa memória. Talvez por isso sintamos que os efeitos visuais são fantásticos, mas não suficientemente bons para que nos esquecermos que se trata dum trabalho criado em computador. Essa fronteira permanece para já e pelo que nos foi dado a ver, intransposta.

No final fica apenas a promessa renovada de que "Avatar" será o filme mais relevante de 2009 e que estaremos prontos e expectantes para, em Dezembro, ver o aspecto final do novo épico de James Cameron.


sábado, 1 de agosto de 2009

Os melhores filmes "Forteanos"

Depois de um longo hiato o "Fila C" volta à vida com uma lista de filmes dedicados ao lado mais bizarro e inesperado da existência humana. Charles Fort foi um autor norte-americano que, entre o final do século XIX e início do século XX, se dedicou à recolha de relatos de acontecimentos estranhos e inexplicáveis. Durante anos revolveu livros e jornais em diversas bibliotecas, compilando uma colecção única de eventos que vão do curioso ao totalmente sobrenatural. O seu estilo de escrita vivo, pontuado por um humor inteligente, tornaram-no numa referência incontornável no estudo do oculto e do paranormal. Chuvas de peixes e sapos, poltergeists, desaparecimentos súbitos, explosões inexplicáveis e animais desconhecidos são apenas alguns dos elementos que surgem mencionados nos seus livros. O termo "Forteano" acabaria por ser usado, em homenagem a Charles Fort, abarcando todo o conjunto das fenomenologias sobrenaturais e paranormais.
O cinema, nos seus mais diversos géneros, possui diversos exemplos que ilustram, por vezes de forma surpreendentemente minuciosa, alguns dos fenómenos a que Fort se dedicou tão avidamente. Os filmes que se seguem serão talvez os que melhor representam esse interesse da sétima arte pelo bizarro e obscuro, numa escolha que leva em linha de conta, como sempre, os devidos critérios de qualidade artística.
- "Os Pássaros" ("The Birds", 1963): Alfred Hitchcock, por mérito próprio, recebeu o epíteto de mestre do suspense. A sua grande capacidade para gerir milimetricamente os conflitos entre as personagens dos seus filmes, revelando gota a gota as suas motivações, amplificava a tensão até limites quase insuportáveis. "Os Pássaros" surge como uma obra única na carreira do realizador britânico na qual o suspense não reside em traições ou crimes cometidos por humanos, passíveis de explicação à luz dos seus perfis psicológicos, mas no terror causado por incompreensíveis ataques organizados de pássaros numa pequena localidade costeira da Califórnia. Partindo de uma fina teia de relações humanas, pautada por um romance em desenvolvimento entre os protagonistas, Hitchcock põe-nos na companhia de pessoas comuns para com eles partilharmos a verdadeira dimensão do absurdo e do horror que se precipita quando somos confrontados com eventos inexplicáveis. Tudo culmina num enigmático e elíptico final, que acentua a dimensão apocalíptica deste clássico imortal do cinema.
- "Donnie Darko" ("Donnie Darko", 2001): O surpreendente filme de estreia do realizador Richard Kelly tornou-se, imediatamente, num objecto de culto. A subversão que faz do género teen movie é magistral, incorporando elementos de ficção cientifica e terror que criam um sentimento de profunda apreensão no espectador. No centro da acção, que se desenrola nos anos 80, está um aluno de liceu que é acometido por estranhas visões proféticas, nas quais um coelho gigante o leva a cometer actos aparentemente incongruentes. O retrato perfeito do desfasamento da juventude na era Reagan é sublinhado pelo tom ameaçador dos elementos paranormais da narrativa que fazem de "Donnie Darko" uma das obras mais marcantes da cinematografia do século XXI.
- "A Última Vaga" ("The Last Wave", 1977): Numa década que assistiu ao aparecimento de um grupo de brilhantes cineastas Australianos (conhecida como a Nova Vaga Australiana), a obra de Peter Weir surge como a mais proeminente e, diga-se, mais perene face à passagem dos anos. Este "A Última Vaga" destila todos os elementos que tornaram o seu autor num artista maior da cinematografia mundial: a originalidade visual e sonora, a incorporação de elementos míticos do passado distante no quotidiano presente e as consequências desse choque anacrónico. A história surreal de um advogado, que aceita defender um grupo de cinco aborígenes que são acusados de homicídio, é pontuada por acontecimentos e visões inexplicáveis que fazem acumular a tensão e a inevitabilidade da catástrofe que se anuncia.
- "A Profecia das Sombras" ("The Mothman Prophecies", 2002): Baseando-se no livro homónimo do recentemente falecido John Keel, este filme é um exercício excepcional de terror psicológico onde somos lentamente envolvidos numa trama de estranhos acontecimentos. Um jornalista vai parar acidentalmente a uma pequena cidade do Ohio, onde os habitantes têm sido atemorizados por aparições de uma criatura alada que profetiza tragédias vindouras. A investigação destes eventos torna-se numa obsessão para o protagonista, que acaba também ele por ser testemunha de contactos bizarros e visões inexplicáveis. O trabalho do realizador Mark Pellington é plasticamente muito bem sucedido, obtendo forte sustentação numa montagem de som eficaz e numa banda sonora ímpar dos Tomandandy.
- "2001: Uma Odisseia no Espaço" ("2001: A Space Odyssey, 1968): O magnum opus de Stanley Kubrick é um marco incontornável na história da arte mundial, uma reflexão intensa sobre a origem e sentido da vida Humana. Este é o derradeiro filme-mistério, uma realização audiovisual tão colossal que escapa a qualquer tentativa de explicação definitiva do seu significado. Foi assim que Kubrick quis que fosse, contando para isso com a colaboração de algumas das melhores mentes nas mais diversas áreas da arte, ciência e tecnologia, destacando-se entre todos o génio de Arthur C. Clarke. A relação do Homem com o Universo, o seu passado e futuro são temas transcendentais plasmados em "2001: Uma Odisseia no Espaço" e que o tornam num acontecimento cinematográfico e filosófico. Também por isso é um filme "Forteano", porque expressa a surpresa do ser humano face aos enigmas da sua existência e do que o rodeia sem preocupações em dar respostas simplistas que fechem a narrativa.
- "Piquenique em Hanging Rock" ("Picnic at Hanging Rock", 1975): O segundo filme de Peter Weir a surgir nesta lista foi, na verdade, o primeiro a dar-lhe projecção internacional. Na Austrália Vitoriana de 1900, as estudantes dum colégio de raparigas deslocam-se ao campo para fazer um piquenique no dia de S. Valentim. Quatro delas, acompanhadas de uma professora, decidem explorar uma magnífica formação rochosa que marca a paisagem circundante. Apenas uma volta para junto do grupo e são organizadas buscas para encontrar as desaparecidas, que resultam num total insucesso. Este evento lança ondas de choque irreversíveis sobre a comunidade local e, especialmente, sobre o mundo fechado do colégio feminino. Weir consegue espelhar de forma belissima os sentimentos de frustração face a um evento inexplicável e a consequente obsessão pela descoberta da verdade. "Piquenique em Hanging Rock" é uma metáfora genial tecida sobre os conflitos interiores (transição da infância para a idade adulta) e exteriores das personagens (o desejo de liberdade coarctado pelo poder da directora do colégio), mas também sobre as dicotomias existentes entre uma cultura cristã fortemente britanizada e a paisagem física enigmática da Austrália, profundamente marcada pela cultural milenar dos aborígenes.
- "Aquele Inverno em Veneza" ("Don't Look Now", 1973): Pouco conhecido nos dias de hoje, Nicolas Roeg foi um nome sonante durante os anos 70, apresentando-se com um estilo de realização e, particularmente, de montagem profundamente inovadores. "Aquele Inverno em Veneza" foi apenas o seu segundo filme como realizador, mas confirmou a sua capacidade para criar filmes visualmente complexos e desafiantes. Depois da trágica morte da sua filha, um casal inglês muda-se para Veneza na esperança de conseguir recomeçar a sua vida. O encontro casual com uma vidente cega, que afirma conseguir contactar com o espírito da sua filha, acompanhado de estranhas visões de uma criança nas quelhas labirínticas da cidade Italiana, lançam-nos numa espiral de incerteza e terror. Roeg cria habilmente uma atmosfera densa e carregada de elementos sobrenaturais que, degrau a degrau, nos transporta para o universo perturbado e perturbador de um casal afectado por uma perda irreparável.
- "O Protegido" ("Unbreakable", 2000): Um combóio descarrila a alta velocidade com 132 passageiros a bordo. O violento acidente tem apenas um sobrevivente, um homem que, miraculosamente, não tem qualquer ferimento. Partindo de uma premissa enganadoramente simples, M. Night Shyamalan materializa uma história enigmática e apaixonante naquele que é, provavelmente, o seu melhor filme até à data. A busca incessante do protagonista por uma explicação para a sua aparente invulnerabilidade leva-o a encontrar alguém que, pela sua enorme fragilidade física (sofre de osteogenesis imperfecta, doença que torna os ossos extremamente quebradiços) e que parece estar no outro extremo do espectro da resistência física humana. Shyamalan adicionou ao argumento, que ele próprio escreveu, elementos do corpus mitológico da banda desenhada, engrossando uma narrativa cativante ao serviço da qual está uma realização milimetricamente controlada para revelar apenas o necessário, preparando o terreno para um final surpreendente. Realce-se também, com a devida justiça, o trabalho de direcção de fotografia do nosso Eduardo Serra e a sublime banda sonora do inevitável James Newton Howard.
- "Terror no Afeganistão" ("The Objective", 2008): Não se assustem com o ridículo título português dado a este interessante trabalho de Daniel Myrick, mais conhecido como co-realizador de "O Projecto Blair Witch", que surge como uma agradável surpresa numa carreira pautada por projectos de baixo orçamento, mas com algumas ideias deveras originais. Um agente a CIA é destacado, em conjunto com um pequeno pelotão de soldados, para investigar um local remoto no Afeganistão onde os satélites espiões norte-americanos detectaram o que parece ser um grande depósito de material radioactivo. Percorrendo o difícil caminho através da aridez montanhosa, a equipa descobre que o seu destino fica em território sagrado para os Afegãos, mas os avisos de perigo não afectam o sentido de missão da equipa. Cedo descobrem que forças sobrenaturais exercem a sua influência sobre área desde há milhares de anos e, por vezes, o caminho para a verdade e a iluminação pode também levar à morte. Myrick oferece-nos uma pequena pérola do cinema de terror, um filme engenhoso e inteligente que nos desperta a curiosidade para os seus futuros projectos.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Até sempre!

Sidney Pollack

1934-2008

sábado, 24 de maio de 2008

Os mais aguardados de 2008

A época de Verão está prestes a chegar e com ela vêm os blockbusters que, este ano, prometem ser de qualidade elevada. Mais para o final do ano, estão também previstas estreias de primeira água. Fica aqui uma lista de filmes a seguir com atenção nos próximos meses.
- “The Happening”: Este é, sem dúvida, um dos acontecimentos cinematográficos do ano, marcando o regresso de M. Night Shyamalan à realização depois dos injustamente criticados (e pouco rentáveis) “The Village” e “Lady in the Water”. As imagens já divulgadas fazem antever um thriller intenso e violento, tecido em redor de uma catástrofe de origem incerta que leva as pessoas a suicidarem-se. Este pode ser um momento fulcral para a carreira de Shyamalan que, durante longos meses, travou uma dura luta para obter financiamento para produzir este filme.
- “The Dark Knight”: Aquele que é um dos grandes blockbusters deste Verão ganhou uma dimensão quase macabra depois da morte inesperada de Heath Ledger. A sua interpretação de Joker promete ser inesquecível, neste que foi o último filme que completou. O realizador Christopher Nolan conseguiu juntar um conjunto de actores verdadeiramente impressionante para continuar a sua interpretação das aventuras de Batman, renovando o género de cinema de super-heróis. Absolutamente imperdível.
- “Wall-E”: O cinema de animação em 3D tem sido um garante de sucesso para muitas produtoras, mas nenhuma o faz tão bem como a Pixar. Desta vez trazem-nos uma aventura interplanetária protagonizada por um simpático robô que ficou esquecido depois da humanidade ter abandonado a Terra. Este filme marca a segunda incursão de Andrew Stanton na realização a solo, depois do excelente ”À Procura de Nemo”.
- “The Escapist”: No seio de um ano carregado de mega-produções é importante chamar a atenção para projectos menores mas, nem por isso menos interessantes. Este thriller dramático ambientado numa prisão inglesa merece destaque, marcando a promissora estreia do britânico Rupert Wyatt na realização. O grande Brian Cox interpreta um condenado a prisão perpétua que giza um ambicioso plano de fuga para ver pela última vez a sua filha, que padece de uma doença terminal. Espera-se mais uma obra de referência no género dos “prison movies”.
- “Blindness”: Depois dum retrato impiedoso da realidade das favelas brasileiras de “Cidade de Deus” e dos complôs da indústria farmacêutica nesse thriller de referência que foi “O Fiel Jardineiro”, Fernando Meirelles arrisca adaptar a obra de José Saramago ao cinema. Caracterizada como infilmável, a obra “Ensaio sobre a Cegueira” serve de base a um drama intenso sobre uma cidade que é confrontada com um inexplicável surto de cegueira. Pelo que nos é dado a ver na trailer, Meirelles abordou o tema numa perspectiva de comentário social mesclado com elementos clássicos do filme-catástrofe.
- “The Curious Case of Benjamin Button”: Este filme marca o reencontro, pela terceira vez, de David Fincher com Brad Pitt, desta vez para uma adaptação de um conto de F. Scott Fitzgerald sobre um homem que nasce com 80 anos e vai rejuvenescendo ao longo da vida. Premissa para uma história fascinante, principalmente por que nos vai permitir ver Fincher a trabalhar num registo diferente, mesclando elementos de fantasia, comédia e romance. Cate Blanchett e a recentemente oscarizada Tilda Swinton são também cabeças de cartaz para este projecto de visionamento obrigatório.
- “Che”: Título provisório utilizado durante a apresentação no festival de Cannes (a versão final será dividida em dois filmes intitulados “The Argentine” e “Guerrilla”), esta realização do multifacetado Steven Soderbergh está já a gerar polémica devido ao ângulo de abordagem da vida de Ernesto “Che” Guevara. Alguns aplaudiram a recriação da personagem mítica, outros apuparam a “lavagem” das facetas pouco laudatórias do revolucionário argentino. Benicio Del Toro tem direito àquela que pode ser a interpretação da sua vida. Esperamos para ver quão à letra Soderbegh terá levado a máxima de John Ford “when the legend becomes fact, print the legend”.
- “Quantum of Solace”: Quem gostou da mudança radical que “Casino Royale” trouxe à personagem de James Bond estará certamente em pulgas para ver esta sequela. Daniel Craig regressa no papel do espião mais famoso de sempre enfrentando agora a obscura organização Quantum e os seus planos para derrubar um regime sul-americano, enquanto prossegue na busca de vingança pela morte de Vesper Lynd. Marc Forster, realizador de excelentes filmes como “Monster’s Ball” e “À Procura da Terra do Nunca”, foi o seleccionado para dirigir este vigésimo segundo capítulo da saga.
- “The Changeling”: Os anos passam e Clint Eastwood, agora dedicado exclusivamente à sua carreira na realização, continua a cimentar o seu estatuto como um dos últimos mestres do cinema clássico americano. Volta agora com um fascinante thriller ambientado na Los Angeles dos anos 20 e baseado na história verídica de uma mulher que suspeita que a criança, devolvida pela polícia depois de um rapto, não é verdadeiramente o seu filho. Angelina Jolie é a figura central desta obra que aparece como um dos mais fortes candidatos a vencer a Palma de Ouro em Cannes.
- “Body of Lies”: Ridley Scott traz-nos a sua visão sobre a guerra contra o terrorismo adaptando o best-seller homónimo de David Ignatius. Leonardo DiCaprio interpreta um agente da CIA que é enviado para a Jordânia para tentar capturar um perigoso terrorista. No papel do seu manipulativo chefe está Russell Crowe, que se tornou num dos actores fetiche do realizador britânico (este é já o quarto filme que fazem em conjunto).
- “X-Files: I Want to Believe”: Quando passam seis anos sobre a emissão do último episódio daquela que foi uma das mais populares séries de TV de sempre, Chris Carter decidiu ressuscitar os icónicos Fox Mulder e Dana Scully para uma nova incursão nas salas de cinema. Pouco se sabe sobre os detalhes do argumento e a trailer já apresentada é bem reveladora do esforço que tem sido feito para mantê-los em segredo. Certamente um filme obrigatório para todos os milhões de seguidores fiéis da série.
- “W.”: Uma letra apenas foi escolhida por Oliver Stone para título do seu novo filme biográfico sobre o ainda presidente dos Estados Unidos da América. No papel de George W. Bush estará um Josh Brolin irreconhecível após um espantoso trabalho de caracterização de que os media já têm feito eco. A acompanhá-lo vão estar James Cromwell, Ellen Burstyn e Jeffrey Wright, trazendo para a tela algumas das figuras centrais da política americana dos últimos 25 anos. Este promete ser o regresso do Oliver Stone polémico, o mesmo que nos trouxe os magistrais “JFK” e “Nixon”, registo em que de facto atingiu o topo da sua arte.
- “The Day the Earth Stood Still”: O filme original de 1951, realizado por Robert Wise, é um clássico do cinema de ficção-científica, produto dos medos e paranóias nucleares da guerra fria. Este remake será um enorme desafio para Scott Derrickson, conhecido essencialmente pelo interessante “O Exorcismo de Emily Rose”, na expectativa de vermos como vai adaptar à realidade actual esta história de um visitante alienígena e do seu omnipotente parceiro robótico, que vêm à Terra alertar a humanidade para o perigo de auto-destruição. Confirmados como protagonistas estão já Keanu Reeves e Jennifer Connely, bons talentos para um filme que poderá ser uma das surpresas do ano.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Indiana Jones e o Reino das Cabeças Ocas

Estreou finalmente um dos filmes mais aguardados dos últimos anos, o novo episódio de uma saga mítica. Mítica pelo seu colossal sucesso junto do público, mas também pelo elevado nível de qualidade que a colocou no topo do cinema de aventuras. No seu melhor momento, com "Salteadores da Arca Perdida", Steven Spielberg revelou-se como um realizador com o talento raro para combinar a acção mais espectacular (e inacreditável) com uma narrativa sólida, feita de grandes personagens e diálogos que homenageavam a época de ouro do cinema de Hollywood. Foi por tudo isto que me tornei num fã de Indiana Jones e foi carregado dessa emoção e expectativa que entrei na sala de cinema para assistir a este novo filme.
No final, fazendo um balanço sincero, percebe-se que nada correu bem e que talvez melhor seria se nos tivessemos ficado por uma trilogia. Sendo curto e directo, desde um argumento perfeitamente risível e incompetente, que demonstra total despeito pelos capítulos anteriores da saga, passando por uma realização amorfa, bem longe do que Spielberg nos habituou, este "Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal" salda-se num rotundo fracasso. Harrison Ford esforça-se por fazer o melhor que pode com as paupérrimas frases que lhe deram, mostrando contudo que ainda tem fulgor suficiente para interpretar a personagem que imortalizou. Cate Blanchett fica na memória como exemplo de uma grande actriz num papel hediondo. Se quiserem uma boa femme fatale é melhor relembrarem a Dra. Elsa Schneider (excelentemente interpretada por Alison Doody) de "Indiana Jones e a Grande Cruzada". Como companheiro de aventuras Indy tem o "wild one" Shia LaBeouf, cuja personagem Mutt acaba por ser o menos mau do filme, e o escorregadio Mac (Ray Winstone), que constará como mais uma referência a reter no campo das personagens para esquecer. Surgem ainda a saudosa Marion Ravenwood e o recém-integrado Dr. Harold Oxley, interpretados respectivamente por por Karen Allen e John Hurt, cujas passagens pelo filme oscilam entre o desnecessário da primeira e o ridículo do segundo.
Digno de menção é também o excesso no recurso aos efeitos especiais digitais, que contribuem de forma decisiva para despir cenas fulcrais de qualquer autenticidade (a longa sequência de perseguição na selva aproxima-se mais ao mundo dos videojogos que ao do cinema). Até no capítulo da música o mestre John Williams pareceu desinspirado, repetindo variações sobre alguns dos temas que marcaram os filmes anteriores, faltando a vibrante originalidade que é imagem de marca deste compositor. Em suma, todo este "Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal" é fracasso, apresentando-se como uma sofrível soma de escabrosas e despropositadas sequências de acção, sem um fio condutor que as una eficientemente, sem um esgar dos maravilhosos diálogos que nos arrancavam sorrisos, nem sequer uma sombra do fascinante mistério que nos colava à cadeira. Não se interprete este texto como um manifesto saudosista, mas sim como uma exaltação daquilo que caracterizou uma saga e que agora parece ter sido posto de lado em função de critérios estéticos e narrativos duvidosos. É verdade que os anos passaram, que o cinema mudou e com ele os seus espectadores. Pena é que a mudança tenha sido para pior, pelo menos para o nosso Indiana Jones.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Via Dolorosa

Recentemente foi transmitido na RTP 2 um excelente documentário sobre os tristes eventos ocorridos na prisão de Abu Ghraib, onde soldados norte-americanos torturaram cidadãos iraquianos, muitos deles inocentes. As fotografias e vídeos humilhantes que correram o mundo relembraram-nos que, independentemente da época ou do conflito em questão, a espada de Damócles do desrespeito dos direitos humanos pende sempre sobre a cabeça daqueles directamente envolvidos num acto de agressão. Como se afirmava nesse portento artístico que é “A lista de Schindler”, de Steven Spielberg, a guerra traz sempre ao de cima o pior que há em nós. No seio do caos bélico, o Homem está submerso na loucura da destruição mútua que cobra as suas vítimas visíveis no campo de batalha, mas também muitas invisíveis cuja psique fica para sempre afectada.
É sobre tudo isto que “No vale de Elah” se debruça de forma aterradora, numa incursão nos abismos da alma e das relações familiares, nas verdades escondidas e palavras nunca ditas. Baseando-se na história real de um soldado que foi assassinado em 2003 depois de regressar do Iraque, Paul Haggis compôs um drama de guerra visto na perspectiva de um pai atormentado (Tommy Lee Jones) que procura a verdade sobre o desaparecimento e morte do seu filho. A viagem que aí se inicia leva-o até ao coração das angústias desta América do século XXI, no frágil equilíbrio entre o respeito pelos poderes do governo federal e a enorme dúvida que emana de um conflito mal justificado junto da opinião pública e, principalmente, dos soldados na frente de combate. Como único aliado terá apenas uma agente policial (interpretação sólida de Charlize Theron), uma mulher que enfrenta diariamente as pressões misóginas dos seus colegas numa esquadra de província e que trabalha aqui no caso mais importante da sua carreira. Revelar mais sobre a história do filme seria destrutivo. A narrativa está construída de forma hábil para nos conduzir de revelação em revelação, permitindo-nos compartilhar a mudança gradual na perspectiva que o personagem central tem do seu filho e, por extensão, do seu país.

Haggis é um dos argumentistas mais respeitados de Hollywood e logo na sua primeira experiência como realizador, com ”Colisão”, conquistou o Óscar de melhor filme. O seu talento sai confirmado neste filme, que dirige de forma confiante e eficiente, sem grandes artifícios visuais, cingindo-se sempre ao essencial do guião do qual também é autor, afirmando-se como um dos grandes pintores da paisagem psicológica e social da América contemporânea.
Tommy Lee Jones, por seu turno, confere à sua personagem uma autenticidade fenomenal, expressa em momentos chave do filme. A forma metódica como faz a sua cama de hotel, o modo acanhado como lida com uma empregada de bar de alterne ou o momento em que, ao passar perto de uma escola, chama a atenção de um salvadorenho que distraidamente içou a bandeira americana ao contrário, tudo apontando para uma personalidade retraída, controlada, fruto de uma vida militar. Idiossincrasias de um verdadeiro patriota, cuja dedicação é posta à prova quando confrontado com a rigidez burocrática dos investigadores oficiais, deparando-se com a realidade turva dos acontecimentos que rodearam a presença do seu filho no Iraque e com a mente perturbada dos membros daquele batalhão recém-regressado.
Vêm à tona as dolorosas memórias da guerra do Vietname, numa época conturbada da história dos EUA em que a sociedade nunca compreendeu o real significado dum conflito tão distante no espaço e também na forma desinteressada, repulsiva até, com que os soldados eram tratados no seu regresso. Um fantasma que ecoa nesta nova guerra, uma ferida aberta onde "No Vale de Elah" põe o dedo de forma precisa, expandindo a sua significância muito para além do género dramático ou policial (onde cumpre perfeitamente a sua função) e estabelecendo-se nessa rara categoria de filme-mensagem, politicamente comprometido com certeza, mas revelando essencialmente uma preocupação sincera com o estado da nação. Num glorioso momento final Tommy Lee Jones leva a bandeira americana desgastada que o seu filho lhe enviou do Iraque e iça-a de cabeça para baixo naquele mesmo mastro junto à escola. Como explica, isso representa um sinal internacional para pedido de auxílio em tempos difíceis. Neste maravilhoso filme é um metafórico pranto de ajuda por um país que parece já não saber cuidar dos seus filhos.