quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Relembrando John Frankenheimer

A história do cinema nem sempre é justa com alguns dos seus protagonistas mais relevantes. A enorme mediatização imposta sobre a vida e obra de alguns realizadores, em conjunto com a crescente relevância que os críticos cinematográficos alcançaram nas últimas décadas, conduzem cada vez mais a fenómenos atípicos em que personalidades medíocres são aplaudidas e premiadas, enquanto que artistas maiores e influentes são conscientemente ignorados.
Um bom exemplo deste último caso será certamente o norte-americano John Frankenheimer. Sem entrar em grandes considerações biográficas - no cinema o percurso desenhado pela obra de um artista far-lhe-à certamente mais justiça que as vicissitudes da sua vida pessoal - destaquemos então os filmes-chave da sua carreira longa e prolífera. Formado no mundo da televisão, Frankenheimer iria fixar-se permanentemente no grande ecrã desde 1961 com a sua segunda longa-metragem "The Young Savages", reflexão sobre a delinquência juvenil de onde se destaca a primeira colaboração com Burt Lancaster, um dos seus actores fetiche. Logo em 1962 surgiria a sua primeira obra de relevância "Birdman of Alcatraz", inspirado pela história real de Robert Stroud, um condenado a prisão perpétua que cura uma ave ferida na sua cela e acaba por se tornar num ornitologista de fama mundial. O já referido Lancaster e Telly Savalas conseguem duas magnificas interpretações, servidas pela direcção sólida de Frankenheimer que iniciaria aqui uma sequência excepcional de filmes que se estenderia por toda a década de 60.
Ainda no mesmo ano surgiria "The Manchurian Candidate" ("O enviado da Manchúria" na tradução portuguesa), filme seminal da sua obra e da história do cinema, um thriller político intenso sobre um grupo de soldados americanos que é raptado durante a Guerra da Coreia. Levados para a Manchúria (província chinesa) são alvo de um complexo processo de lavagem ao cérebro envolvendo hipnose profunda, com o intuito de criar o assassino infiltrado perfeito e manipular a política interna dos Estados Unidos. Frank Sinatra tem um dos grandes papéis da sua carreira como o confuso Major Bennett Marco, um solitário cujos pesadelos recorrentes o levam a investigar os acontecimentos que rodearam o desaparecimento do seu grupo na Coreia. John Frankenheimer revela aqui a sua enorme inteligência enquanto realizador, recorrendo a uma estética noir claustrófóbica que combina o humor negro com enquadramentos e ângulos de câmara pouco convencionais, gerando uma atmosfera irrespirável e plena de tensão. A estranha presciência do filme (a morte do presidente John F. Kennedy no ano seguinte seria apenas a primeira entre uma mão cheia de assassinatos políticos ocorridos nos EUA durante os anos 60) levou a que permanecesse quase desconhecido do grande público durante anos após o seu lançamento, até Frank Sinatra levar ao seu ressurgimento nos cinemas em 1988. A influência de "The Manchurian Candidate" iria estender-se não só pela restante filmografia de Frankenheimer, mas também na obra de um conjunto de jovens realizadores (Francis Ford Coppola, Alan J. Pakula e Brian De Palma, entre outros) que na década de 70 viriam a revitalizar o thriller originando um sub-género conhecido como paranoid thriller, filho da desilusão sócio-política gerada pelos assassínios de figuras centrais como os irmãos Kennedy e Martin Luther King e também pela longa guerra no Vietname.
Em 1964 seria lançado "Seven Days in May", reflexão intensa sobre as relações entre os poderes político e militar, revolvendo sobre um grupo de generais que planeia um golpe de estado após o anúncio de um acordo pacífico entre os EUA e a URSS para a desactivação total do arsenal nuclear de ambas as nações. Burt Lancaster desempenha o papel de um carismático general que mostra total desconfiança na boa fé dos até então inimigos do bloco comunista, desenhando o plano para a tomada do poder. Do outro lado da barricada encontra Kirk Douglas, um colaborador próximo que prefere desiludir o mentor que trair a sua pátria. Mais uma vez John Frankenheimer mostra a sua habilidade inata para criar tensão no ecrã preferindo, tal como na sua obra anterior, o uso da fotografia a preto e branco para realçar visualmente as dicotomias intrinsecas a cada personagem.
Mantendo-se nos "carris" do thriller seguir-se-ia "The Train" ("O Comboio", 1965) onde o omnipresente Burt Lancaster toma de novo o protagonismo como um corajoso resistente francês que, durante a II Guerra Mundial, tenta impedir os soldados nazis de levar um combóio carregado de peças de arte roubadas para a Alemanha. Frankenheimer dirige aqui não só um dos melhores filmes de guerra como também um dos grandes épicos de acção da história do cinema, conjugando sabiamente o suspense com personagens profundas e interessantes, com particular destaque para a de Lancaster, plena de dúvidas sobre a real necessidade dos seus actos. Também relevante será "Seconds" (1966), contundente fábula paranóica sobre um homem que decide abandonar a sua vida desinteressante para mudar de identidade com a ajuda de uma sombria organização. Depois de um conjunto de operações plásticas é-lhe dada uma nova opotunidade para começar a sua vida, desta vez como um pintor residente numa hedonística comunidade de Malibu, na Califórnia. Depressa se sente acossado na sua nova vida, mas a saída para o "velho mundo" não é uma porta que se abra com facilidade.
Durante os anos seguintes Frankenheimer iria seguir um caminho inconstante, com muitos altos e baixos, pelo que se poderão destacar algumas obras que sobressaem como "The Fixer" (1968), "The Iceman Cometh" ("O Homem de Gelo", 1973) e "The French Connection II" ("Os Incorruptíveis Contra a Droga II" de 1975, uma sequela excelente e psicologicamente mais profunda que o original, mas tambem injustamente esquecida). A década de 80 seria marcada por insucessos consecutivos que acabariam por conduzi-lo de volta ao trabalho para televisão. Tal facto não foi de forma alguma negativo, já que o realizador voltaria a recolher algum reconhecimento e sucesso, parecendo encontrar no pequeno ecrã a liberdade que havia perdido nas grandes produções de Hollywood. De monta são os seus trabalhos "The Burning Season" (1994), "Andersonville" (1995) e "Path to War" ("Caminho para a Guerra", 2002). Em 2002, após complicações surgidas durante uma operação à coluna, Frankenheimer viria a falecer aos 72 anos. Não poderia contudo terminar sem a obrigatória referência a "Ronin", filme produzido em 1998 e que representou certamente a sua última grande realização cinematográfica. Trabalhando sobre um argumento de David Mamet (creditado como Richard Weisz por divergências com a produtora), este filme transporta-nos para o mundo do pós-Guerra Fria onde os letais (e leais) agentes secretos de ontem são mercenários a soldo de quem pagar mais (daí a analogia com os Ronin japoneses, samurais sem mestre). Robert De Niro e Jean Réno formam uma dupla cativante de guerreiros sem rumo, incorporados numa equipa de elite formada para recuperar uma mala cujo conteúdo é desconhecido. A partir daqui decorre todo um agitado conjunto de eventos entre a amizade e a traição, tornados inesquecíveis pelas já famosas sequências de perseguição através de apertadas ruelas em várias cidades francesas e onde se faz sentir a mão experiente do realizador. Uma jóia a preservar, especialmente numa era em que os thrillers de acção estão reduzidos a meras montras de efeitos digitais, pelo que é anacronicamente refrescante voltar à autenticidade da acção filmada como há três décadas atrás (basta ver o já citado "The Train" do mesmo realizador para perceber este conceito de realismo).
Talvez seja por isso que grandes realizadores como John Frankenheimer acabam esquecidos, porque a passagem do tempo mudou a sua visão do mundo, mas não a sua forma idiossincrática de o filmar.

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