sábado, 17 de novembro de 2007

Crónicas de uma era perdida


A arte cinematográfica tem por vezes momentos fantásticos onde, qual tira de Möbius, duas eras tão distantes no espaço e no tempo se unem por breves instantes para proporcionar um espectáculo sensorial magnífico. Aqui, o poema épico escrito por um autor anónimo há mais de mil anos é adaptado ao grande ecrã fazendo uso das mais avançadas tecnologias digitais 3D e o resultado é este "Beowulf" de Robert Zemeckis.
O realizador norte-americano conjuga no seu filme toda uma longa tradição de literatura e cinema de fantasia e ficção histórica, não sendo contudo pioneiro na exploração das temáticas do épico nacional inglês. Um dos primeiros a reconhecer a importância desta obra foi o hoje mundialmente conhecido J.R.R. Tolkien, que escreveu na década de 30 um importante ensaio onde realça as qualidades líricas do poema e aplaude a sua dimensão fantástica. O autor da trilogia "O Senhor dos Anéis" referiu mesmo que "Beowulf " estava "entre as suas fontes mais valiosas" e a influência deste na sua obra é seminal. Também no cinema foram tentadas algumas adaptações com resultados muito diversos, das quais se deve destacar "O Último Viking" ("The 13th Warrior" de John McTiernan), épico de acção muito interessante que é uma mescla de elementos do poema com outras fontes históricas ficcionadas pelo escritor Michael Crichton. Este filme teve decididamente alguma influência sobre o filme de Zemeckis, que vai desde a encenação das batalhas até à abordagem estética de algumas sequências (a chegada do protagonista num barco por entre um mar tempestuoso, por exemplo).
Para marcar a diferença, os argumentistas Neil Gaiman e Roger Avary enveredaram por uma adaptação livre do poema, aproveitando alguns elementos essenciais da sua estrutura: as três batalhas contra outras tantas criaturas são também no filme o fulcro da dinâmica narrativa. Às divergências obrigatórias, fundamentalmente no que concerne aos diálogos e à linguagem utilizada nos mesmos, juntaram outras muito interessantes quanto à natureza moral das personagens e das suas relações. Se no primeiro vector não foram muito bem sucedidos (algumas expressões linguísticas estão fora do contexto histórico do filme ou simplesmente não resultam) é no segundo que reside uma das grandes forças do filme, nada menos que a profundidade psicológica implícita de figuras como Beowulf, Hrothgar, Wealtheow e a mãe de Grendel. O protagonista do filme (Ray Winstone) é simultaneamente um herói corajoso e respeitado, mas também um egocêntrico fanfarrão obcecado com a perpetuação dos seus feitos no seio da comunidade. O seu orgulho só é comparável ao de Hrothgar (Anthony Hopkins), um rei envelhecido e vergado aos pecados de um passado que o atormenta e aos que o rodeiam. A sua esposa Wealthow (Robin Wright Penn) esconde-se na sua persona de distanciamento e recato, sendo contudo incapaz de deixar perspirar a sua atracção por Beowulf. Aquela que é talvez a personagem-chave de toda a história, a mãe de Grendel (Angelina Jolie), foi fortemente alterada pelos escritores do filme que a converteram numa sensual criatura metamorfa, que seduz quem entra no seu reduto subterrâneo com promessas de prazer e poder.


Sem revelar muito mais sobre as surpresas do argumento, refira-se que a construção visual deste mundo (misto de elementos artísticos das civilizações nórdicas e de referências estéticas do género fantástico em geral) está excepcionalmente bem conseguida, oscilando entre o detalhe dos espaços e indumentárias e a criatividade no desenho das criaturas, entre facto histórico e mito literário. Esta que é uma sociedade hedonista, de exagerados festejos regados com hidromel no grande salão do rei e de guerreiros insaciáveis de violência e mulheres, elemento que Zemeckis teve coragem de representar de um modo nunca antes visto no cinema de animação norte-americano. Uma opulência que é também sinónimo de decadência moral e declínio civilizacional, fruto da desconfiança nos velhos deuses do panteão de Valhalla e do avanço constante do cristianismo que se vai fazendo anunciar. Num momento revelador, após o arrasador ataque do monstruoso Grendel, Unferth (John Malkovich) questiona o Rei Hrothgar se para além das oferendas a Odin (deus máximo da mitologia nórdica) não deverão também prestar veneração à nova divindade Jesus Cristo para os proteger contra desgraças futuras.
Se toda a narrativa é interessante por si mesma, o capítulo técnico do filme é a sua alma-mater. "Beowulf" quebra um conjunto de barreiras no cinema de animação, abrindo precedentes na representação realista de figuras humanas. Após meritórios exemplos como "Final Fantasy" e "The Polar Express" (realizado também por Robert Zemeckis), assistimos aqui ao próximo passo na tecnologia de motion capture ao serem recriados digitalmente actores de renome como Anthony Hopkins ou Angelina Jolie. O resultado final é impressionante pelo realismo, mas também pelo facto de não existir uma colagem total á imagem dos humanos representados, já que é permitida grande liberdade de alteração das características físicas dos mesmos, desde a altura até à idade.
No final, esta obra inscreve-se num género de acção fantástica que a aproxima mais de épicos violentos como "Conan e os Bárbaros" que da fantasia hard-core de "O Senhor dos Anéis". Esse é certamente um dos factores que desconcertou a crítica dos EUA, habituada a um cinema de animação de temáticas pueris, ao contrário de tradições artísticas como a nipónica onde este sector expandiu há muitas décadas a sua área de intervenção para além do público infantil. A esse facto não serão estranhos elementos como a forte consciência sexual da história (mais insinuada que gráfica) e a representação da violência nas várias batalhas de uma forma nunca antes vista com empalamentos, braços decepados e jorros de sangue (quem jogou "God of War" para a Playstation 2 irá soltar um sorriso de reconhecimento em certas sequências do filme). O ritmo imparável de "Beowulf" apelará certamente a um público adolescente, mas realização excepcional tanto ao nível estético como técnico (principalmente para quem puder assistir a uma projecção em 3D) vai fascinar as audiências mais adultas. Deve-se aplaudir a coragem em lançar um produto tão arriscado, para gáudio de todos aqueles que amam a animação como uma arte por mérito próprio e não como um compartimento estanque do cinema reservado às crianças e aos seus pais em matinés de Domingo. Obrigado Robert Zemeckis!

2 comentários:

Anónimo disse...

Olá!

Costumo vir aqui em busca de novos posts mas infelizmente nunca mais encontrei textos novos. Queria dar os meus parabéns pela escolha de temas e pela abordagem séria. Desejos de um bom ano cheio de bom cinema. E não se esqueça de ir actualizando o seu blog!

Carlos de Figueiredo disse...

Obrigado pelo comentário e por visitar este blog.
Infelizmente não tenho tido muito tempo para actualizar o Fila C. Prometo contudo novos textos para o início da próxima semana.